Mario Castro-Neves: Mario Castro-Neves & Samba S. A. (2001)

Mario Castro Neves & Samba S.A.

Reedição produzida por Arnaldo DeSouteiro (Jazz Station Productions)
Texto de Arnaldo DeSouteiro

Mário Castro Neves sempre foi chique. Chique e low-profile. Sua música reflete sua personalidade. Instigante, inspirada, sofisticada, cosmopolita, livre do provincianismo que tanto atrapalhou e ainda hoje sempre se insurge diante de qualquer tentativa de evolução na chamada MPB. Pianista de concepção orquestral, compositor de melodias sinuosas, arranjador de extremo refinamento, conduziu sua carreira de forma ímpar. Nunca correu de encontro às fórmulas comerciais de sucesso, jamais fez parte de “panelinhas”. Talvez por isso seja praticamente desconhecido em seu próprio país, enquanto é reverenciado no exterior até mesmo por um público bastante jovem, atraído pelo balanço de suas gravações cultuadas no cenário do “dancefloor jazz”.

Caso deste disco de estréia, “Mário Castro Neves & Samba S.A.”, o único gravado no Brasil – em 1967 – antes de optar por viver no exterior. O mais velho em uma família de seis irmãos, nascido em 12 de novembro de 1935, cresceu respirando música ao lado de Leo (baterista que mais tarde se dedicou à advocacia), dos trigêmeos Zeca (clarinetista amador), Iko (baixista depois convertido à arquitetura) e Oscar (violonista/arranjador/produtor de fama internaciona), e do temporão Pedro Paulo, o Pepê Castro-Neves, cantor há vários anos radicado na França. Além da irmã Maria Lina, incentivadora de todos eles, e atenta espectadora das jam-sessions que rolavam nos finais de semana no amplo apartamento da família, na Umari 35, em Laranjeiras.

Por volta de 1955, o quarteto formado por Mário, Leo, Iko & Oscar - informalmente conhecido como American Jazz Combo em apresentações na Rádio Difusora de Petrópolis, - virou o quinteto “Os Modernos” com a adesão de Manuel Gusmão no vocal. “Nosso repertório incluía músicas do Mário e standards americanos”, relembra Gusmão, que entraria para a história da bossa como baixista dos discos de estréia de Jorge Ben (“Samba Esquema Novo”), Flora Purim (“Flora É MPM”), Meirelles (“Copa 5”) e Wanda Sá (“Vagamente”). “Naquela época, o Mário, que tinha estudado com o austríaco Hans Graff, era o grande compositor da turma, porque o Oscar só começaria a compor em 1957, quando passamos a tocar na TV Rio, aos sábados à noite, num programa dirigido pelo Walter Clark”.

Em seguida, Mário ficou amigo de Ronaldo Bôscoli, com quem compôs a suite “A Menina e a Rosa”, e o samba “Mamadeira Atonal”, cuja letra já antecipava a rebeldia estética da bossa: “Reclamem com o papai se eu nasci moderno assim / Perguntem prá mamãe se o dissonante mora em mim / Tomei a mamadeira e fui ninado em atonal / E o meu sonho é embalado por um ritmo infernal”, terminando com “Pergunto prá você se está errado um samba assim / Se não é brasileiro quem não toca tamborim”. Nunca chegou a ser gravado, mas era imprescindível em todas as reuniões. Fez parte, inclusive, do repertório do 1º Festival de Samba-Session, cantada – pasmem! – pelo próprio Bôscoli. Realizado em setembro de 59, no Anfiteatro da Faculdade Nacional de Arquitetura, teve Carlos Lyra, Alayde Costa, Nara Leão, Norma Bengell, Sylvia Telles e os irmãos Castro Neves como astros principais.

“Eu tinha me formado em química e via a música apenas como hobby”, comenta Mário, que saiu do conjunto pouco antes do grupo - rebatizado Oscar Castro Neves Quartet - embarcar para o célebre concerto de bossa nova no Carnegie Hall, em NY, em novembro de 62. “Oscar assumiu a função de pianista, viajando com o Iko no baixo, Roberto Pontes Dias na bateria e Henri Percy Wilcox na guitarra. Eu e o Leo ficamos em Copacabana, curtindo a praia. Casei, tive três filhos e me separei. Uma noite, em 1965, fui assistir o Copa Trio, do Gusmão, tocando no Bottle’s Bar, no Beco das Garrafas. Dei uma canja e decidi que não ia mais largar o piano”.

Aos poucos, amadureceu uma nova concepção, criando um quinteto com dois pernambucanos recém-chegados ao Rio (o baixista Novelli & o baterista Normando) e duas vocalistas cariocas (Thaís do Amaral & Biba). Nascia o “Samba S.A”, cujo primeiro e último álbum surgiu em 67 para a RCA, a convite do diretor artístico Geraldo Santos. Finalmente relançado em CD, depois de disputado a peso de ouro por colecionadores durante décadas, tem as doze faixas originais acrescidas de quatro músicas gravadas nas mesmas sessões. Três delas (“Costa Brava”, “Rosa Morena”, “Estrada do Sol”) incluidas somente no LP “The Wonderful Latin-American Sound of Brazil”, editado nos EUA em 68. Uma outra (“Carolina”) inteiramente inédita. “Adorei esta idéia de juntar todas as dezesseis faixas, porque pela primeira vez as pessoas poderão ouvir o trabalho completo”, celebra Mário.

No cardápio, uma bem balanceada e balançada mescla de canções consagradas e outras pouco conhecidas. Clássicos da bossa são recriados com salutar ousadia, recebendo um tempero que ainda hoje soa moderno porque atemporal, no sentido mais literal do termo. Até mesmo as faixas mais comportadas, como “E Nada Mais”, “Corcovado” e “Carolina”, ganham um molho saboroso graças a novas soluções harmônicas. Com a sabedoria dos melhores arranjadores, Mário capricha nas introduções e finalizações, sem esquecer de remexer no recheio. Seu piano, tão conclusivo quanto econômico, esbanja swing, principalmente em “Candomblé” (repleta de variações rítmicas) e “Nanã”, tratada com menos sisudez do que de costume, com a mão esquerda valendo por vários atabaques.

Nas vocalizações, a soma de pequenos detalhes acaba fazendo grande diferença, até mesmo quando, caprichando nas dissonâncias, as moças dispensam as palavras na deliciosamente sexy “De Brincadeira”. Ou no refrão de “Vem Balançar”, transformado em riff irresistível. Ou ainda nas sílabas esticadas na inusitada parceria de Wilson Simonal & Chico Feitosa em “Tá Por Fora”, latinizada sem derrapar para a esfera do caricatural. Todos os detalhes trabalhados com tanta sutileza que podem até passar despercebidos por ouvidos menos treinados, acostumados apenas ao que é exclamado ao invés de insinuado.

Alguns temas foram compostos especialmente para o disco. Para desespero dos puristas chatonildos, direto em inglês: “Once More”, da cantora Thaís, e “Yearning Lovers”, charmosa bossa de Mário, a la Mancini, letrada por segunda esposa, Sarita Levy. Outra criação do líder, “Costa Brava” é um dos pontos altos da sessão, devido a seu caminho melódico surpreendente, destacando as vozes deslizando como trompas. “Bye Bye Blackbird”, imortalizada por Miles Davis em 1956, transforma-se em samba de primeira. A precisa levada de “Keep Talking”, o famoso “Amazonas” de João Donato gravado nos EUA por Chris Montez, contagia desde o primeiro compasso. Momento de calmaria se comparado aos endiabrados tratamentos conferidos a “Morte de Um Deus de Sal” (incluindo citação do “Samba da Benção” no solo de piano) e “Rosa Morena” e “Estrada do Sol”, transmutados em samba-jazz da mais alta estirpe.

Depois de “Samba S.A.”, Mário ainda fez alguns trabalhos no Brasil, inclusive para a RCA, assinando os arranjos de “Tito Madi em Nova Dimensão” (68), antes de começar a rodar o mundo naquele mesmo ano. Primeiro, liderando a banda de apoio de Elza Soares durante uma turnê pela Itália, seguindo direto para a Inglaterra. Viveu em Londres até 74, onde gravou outro petardo, um dos primeiros discos mixados em sistema quadrafônico, “Brazilian Mood – Mário Castro Neves And His Orchestra” (73), cultuado na cena acid-jazz depois que a suntuosa faixa “Helena and I” foi incluida, em 99, na compilação “A Trip To Brazil Vol. 2: Bossa & Beyond”. Em janeiro de 75 viajou para o Canadá, gravando “The Latin Band of Mário Castro Neves”. Passou também pela França, registrando “Un Brésilien A Paris”, e radicou-se nos Estados Unidos em 77.

“Nos anos 80, me dediquei integralmente ao trabalho na Princeton University, em New Jersey, lecionando composição, orquestração e regência, além de comandar o departamento de pesquisa sobre música latino-americana”, revela com indisfarçável orgulho. “Quando sobrava um tempinho, fazia shows com o meu grupo Subtle Chemistry, que marcou a volta do guitarrista Pat Martino à atividade, em 84, depois de ter sido operado de um aneurisma cerebral. Nos anos 90, abri um estúdio de jingles em sociedade com o Tony Camillo, produtor de vários hits de Gladys Knight & The Pips. Já fizemos algumas coisas juntos na linha r&b, como o disco “Love Ride”, da cantora Angel Sessions, em 99”. Planos de voltar ao Brasil? “Só se for para passear. Nas minhas duas últimas viagens ao Rio, reuni os amigos e armei umas jams no Chico’s Bar e no Mistura Fina”. Não custa sonhar com a possibilidade de uma nova celebração, aberta ao público, por conta do relançamento de “Samba S.A.”. Ou será que o Brasil ainda não merece a bossa chique, refinada, charmosa e sexy (só para repetir alguns dos adjetivos citados acima) de Mário Castro Neves?

Arnaldo DeSouteiro
Petrópolis, 25 de setembro de 2001
jsr@email.iis.com.br
(Produtor musical, historiador de jazz e música brasileira, jornalista e educador – membro da IAJE, International Association of Jazz Educators)