Luiz Bonfá: The New Face of Bonfá (2003) |
Luiz Bonfá: “The New Face of Bonfá” Liner Notes by Arnaldo DeSouteiro Quando Luiz Bonfá entrou para o cast da RCA norte-americana, em
fevereiro de 1970, e logo depois gravou “The New Face of Bonfá”,
o mestre vivia a vida que nem sonhara pedir a Deus. Já há
muito consagrado com um dos melhores violonistas e compositores do mundo,
tinha alcançado também uma invejável estabilidade
financeira, que lhe permitia filtrar as dezenas de convites de trabalho. Na verdade, embora conste que Bonfá tenha se mudado para os Estados Unidos em 1957, ele nunca chegou a “morar” em New York. Passava a maior parte do tempo por lá, mas jamais comprou um apartamento. Preferia ficar em hotéis como o Paramount, na Rua 46, entre as avenidas Broadway e Oitava. Os investimentos ele deixava para fazer no Brasil, vindo anualmente ao Rio para períodos de férias que ele próprio determinava. E que podiam durar até três, quatro meses. Naquelas vindas, aplicava em ações e imóveis – foi um pioneiro desbravador da Barra da Tijuca, onde até o final da vida morou numa belíssima casa na Estrada Sorimã -, aumentava sempre a coleção de carros antigos, e dava jeito de manter algumas atividades no meio musical brasileiro, seja compondo trilhas para filmes como “Os Cafajestes” (de Ruy Guerra, em 62) ou gravando para a Odeon. Alguns daqueles discos acabaram lançados no mercado americano, com novos títulos, pelos selos Capitol (“Alta Versatilidade”, de 57, virou“Luiz Bonfa’s Brazilian Guitar”) e Epic (“O Violão e o Samba”, de 62, virou “Softly”). Além do mais, era um homem de muita sorte. Tanto que, na primeira festa a que compareceu em NY, na casa do joalheiro Julius Glanzer - onde foi ouvido por Arthur Rubinstein, Yul Bryner, Bob Wagner e Natalie Wood, sob o testemunho de Zezinho Gueiros - terminou a noite com duas propostas de contrato. Uma do poderoso fundador da Atlantic, Neshui Ertegun, para imediatamente entrar em estúdio e gravar seu primeiro LP nos EUA (o instigante “Amor!”, recentemente relançado em CD). Outra da cantora e atriz Mary Martin, para atuar como “special guest” numa longa turnê coast-to-coast que começaria dali a duas semanas. Ao término da excursão, em meados de 58, Bonfá veio descansar no Rio e, por total acaso, acabou se transformando em peça-chave para o sucesso extraordinário de “Orfeu Negro”. Marcel Camus, diretor do filme, já estava quase encerrando as filmagens, mas permanecia insatisfeito com a trilha de Tom Jobim & Vinicius de Moraes originalmente preparada, em 56, para a peça “Orfeu da Conceição”. Solicitou a Bonfá que escrevesse um novo “score”, nosso herói argumentou que não teria tempo para compor a trilha inteira porque precisava retornar a NY, mas Camus tanto implorou que acabou convencendo Bonfá a lhe entregar duas músicas inéditas: “Manhã de Carnaval” e “Samba de Orfeu”, cujas letras inicialmente encomendadas ao amigo Rubem Braga (“arrume outro porque sou poeta, não tenho vocação para letrista de música” teria dito) acabaram nas mãos de outro craque, Antonio Maria. O resultado todo mundo, no mundo todo, sabe. Tanto o filme como a trilha obtiveram estrondoso sucesso, faturando a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro em 59 - com a ajuda indiscutível das duas canções de Bonfá, que viraram standards instantaneamente, antecipando o estouro da bossa-nova. Durante o famoso concerto no Carnegie Hall, em 62, Bonfá foi o único artista ovacionado e obrigado a bisar pela platéia. E não poderia ter sido diferente: apesar das presenças de nomes como Tom Jobim, João Gilberto e Sergio Mendes, a única música até então conhecida pelos americanos era “Manhã de Carnaval”. No dia seguinte, foi convidado a assinar com a Verve, então dirigida por Creed Taylor, que assistira ao concerto e viria a produzir os até hoje constantemente relançados “The Composer of Black Orpheus Plays and Sings Bossa Nova” (com arranjos de Lalo Schifrin) e “Jazz Samba Encore!” (ao lado de Stan Getz). Na seqüência, Bonfá gravou para os selos Philips, Fontana, London e Mercury. Em 67, um fenômeno: apesar do retumbante fracasso comercial do filme “The Gentle Rain”, a trilha sonora composta por Bonfá, e gravada (mas nunca lançada) no Brasil com orquestrações de um jovem de 25 anos chamado Eumir Deodato, alcançou enorme sucesso. O LP, hoje valendo uma fortuna e absurdamente nunca relançado, virou objeto de culto entre os jazzmen americanos, que não demoraram a transformar a canção-título em “jazz standard”, contabilizando mais de 300 gravações – inclusive por Tony Bennett, responsável pela definitiva popularização da música. Outro tema da trilha, “Non-Stop to Brazil”, também virou hit, na voz de Astrud Gilberto. Quando Bonfá recebeu irrecusável proposta para assinar com a Dot Records, subsidiária da Paramount, em 68, exigiu levar um arranjador brasileiro para trabalhar nos discos. Bonfá contava que ficara em dúvida entre Luiz Eça, já famoso e muito ocupado com o Tamba, e Deodato, que o deixara muito bem impressionado não apenas durante a gravação de “The Gentle Rain” mas também no arranjo, em 66, para “Dia das Rosas”, canção de Bonfá e sua esposa Maria Helena Toledo finalista no I Festival Internacional da Canção (FIC), na voz de Maysa. Foi uma boa fase para Luiz, e melhor ainda para Eumir, logo apresentado à Creed Taylor, que o chamou para trabalhar com Astrud, Wes Montgomery e muitos outros, numa associação que mais tarde renderia, em 73, cinco milhões de discos vendidos de “Also Sprach Zarathustra/2001”. Durante o período na Dot, Bonfá ampliou sua popularidade como intérprete, gravando quatro discos que misturavam composições próprias com sucessos pop da época, de autores tipo Paul Simon (“Mrs. Robinson”) e Burt Bacharach (“Do You Know Then Way to San Jose?”). Sempre generoso, dava um jeito de encaixar temas inéditos de amigos como Pingarilho & Marcos Vasconcellos (“Afternoon’s Wind”). Eumir fez todos os arranjos para os dois primeiros discos na Dot. Nos dois últimos, dividiu a tarefa com Nick Perito (o favorito de Perry Como) e Arnold Goland (maestro de Shirley Bassey). A parceria Bonfá-Deodato rendeu ainda um disco-solo de Maria Toledo (“Sings the Best of Luiz Bonfá”, para a United Artists) e outro com a dupla Steve Lawrence & Eydie Gormé (“Steve & Eydie, Bonfá & Brazil”, para a Columbia). Ao assinar com a RCA, entretanto, Bonfá fez diferentes exigências contratuais: poderia escolher não apenas os arranjadores, como também os produtores. Mais: gravaria somente composições próprias. Tudo acertado, surpreendeu os diretores da companhia ao comunicar que embarcaria para gravar, no Brasil, as bases do disco de estréia na nova companhia. “Para que gravar na selva, se os melhores estúdios e músicos estavam à disposição nos EUA?”, perguntava-se, atarantado, o diretor artístico Chet Atkins. Porque Bonfá andava em busca de novas sonoridades, queria trabalhar sobre outros ritmos brasileiros além da bossa-nova. E assim, cheio de gás, rumou para o Rio de Janeiro em março de 1970. Como a RCA estava sem estúdio no Rio naquela época (“os estúdios antigos, lá perto da Central do Brasil, haviam sido desativados, e os da Barata Ribeiro só começariam a funcionar em 74”, relembra Luigi Hoffer), precisou alugar o Áudio Studio B, de um velho amigo, o músico Bill Horne, craque do mellophone. “Eu conhecera o Bonfá em 62, porque tive o privilégio de assistir ao concerto de bossa nova no Carnegie Hall”, revela Bill. “Depois voltamos a nos encontrar em NY uns dois anos mais tarde, quando fui assistir um show dele com a Maria Helena no Village Gate. Viramos a noite conversando numa pizzaria lá no Greenwich Village, porque o Luiz era bom de papo”. Em 70, Bill possuía um dos melhores estúdios do Brasil, e um dos poucos a contar com uma mesa de quatro canais. Ficava na Rua Anita Garibaldi, em Copacabana, onde Bonfá desembarcou cheio de idéias, com dezenas de temas inéditos. “Ele me avisou que pretendia levar a fita de meia-polegada para New York, onde iria fazer as complementações no estúdio de oito canais da RCA americana”, detalha Bill Horn. “Era uma atitude ousada, não lembro de ninguém que tivesse feito algo semelhante naquela época”. No Rio, Luiz gravou as bases de seis faixas, assessorado por músicos jovens como os pernambucanos Novelli (baixo) e Naná Vasconcellos (percussão), o violonista/guitarrista mineiro Nelson Ângelo e o baterista niteroiense Gegê. Em duas músicas, “Salvador” e “Peixe Bom”, o carioca Milton Banana assumiu a bateria. Na maioria das faixas Bonfá tocou uma craviola de 12 cordas, fabricada pela Giannini seguindo suas especificações. Entusiasmadíssimo com as suas possibilidades, fez questão de posar com o instrumento nas fotos para a capa do disco. No samba-jazz “Salvador”, pegou emprestada a guitarra elétrica que Nelson levara para o estúdio e mandou ver, tocando sem palheta, deixando Milton Banana estupefato. Na etérea “Medieval”, de sucessivas mudanças de clima e andamento (seções em 7/4, 2/4 e 4/4), com Naná arrasando nos efeitos percussivos, Luiz optou pelo violão tradicional de 6 cordas. Sempre de nylon. “Africana” (um baião com tintas africanas), “Savanarole” (peça influenciada pelo Impressionismo de Debussy & Ravel, os compositores favoritos de Bonfá) e “Peixe Bom” (um maracatu pré-atômico com letra composta & cantada por Luiz) acabaram ficando apenas com o grupo de base. “Salvador”, “Medieval” e “Helicopter 274” (incluindo o efeito “sampleado” da hélice) receberam refinadas orquestrações engenhosamente adicionadas em NY pelo maestro Marty Manning, sugerido a Bonfá pelo produtor que ele escolhera, Ernie Altschuler. Luiz desejava trabalhar com Ernie desde que haviam se conhecido, em 67, durante as gravações do maravilhoso LP “The Movie Song Album”, de Tony Bennett, que abrigava as participações de Bonfá em “The Gentle Rain” e “Samba de Orfeu”. Mas Ernie vivia ocupadíssimo, justamente por causa de Tony, para quem produzira o mega-hit “I Left My Heart in San Francisco”, em 62. Com arranjo de quem? Marty Manning, claro, convocado por Bonfá justamente por conta de seu bom entendimento/rendimento com Altschuler em vários discos de Bennett. O currículo dos gringos era invejável. Marty participara de álbuns de Harry Belafonte, Vic Damone, Perry Como, Wild Bill Davidson, Sarah Vaughan, Dinah Washington, Sylvia Syms, Henry Mancini, Brenda Lee, Andy Williams, Barbra Streisand, e trabalhava regularmente com o grupo The Ventures. Sem falar dos discos-solo “Then Twilight Zone” e “Cocktail Music for Robots”, hoje incensados como clássicos do chamado “space age bachelor pop”. Ernie produzira também, além de quase todos acima citados, Johnny Matthis, Ray Conniff, Art Van Damme e Quincy Jones. Para agravar a situação, Bonfá recrutou um timaço para as bases a serem gravadas em abril no amplo estúdio da RCA em NY – o preferido de Arturo Toscanini - lamentavelmente transformado num depósito em 92. No baixo elétrico, que vinha usando em gravações de Freddie Hubbard e George Benson para a CTI, o mestre Ron Carter. No violão de base, Gene Bertoncini, recomendado por Tony Bennett (com quem gravara “I’ve Gotta Be Me”) mas já admirado por Luiz desde a memorável atuação no “Marquis de Sade”, de Lalo Schifrin. Na bateria, Dom Um Romão, radicado em NY desde 65, prestes a deixar o Brasil 66 de Sergio Mendes e a ingressar no Weather Report. No decorrer das quatro faixas que gravou, Dom Um derruba a falsa tese de ser um “batera barulhento”, fomentada por invejosos colegas, tocando tão suavemente como já havia feito com Bonfá (no LP “Braziliana”, em 66) e Tom Jobim (em “A Certain Mr. Jobim”, “Then Wonderful World of Antonio Carlos Jobim”, “Wave” e no primeiro encontro com Frank Sinatra para a Reprise, em 67). Completando o “dream-team”, o rei das congas Ray Barretto e o ex-percussionista de Walter Wanderley, Bobby Rosengarden. Nada de piano, órgão ou qualquer tipo de teclado. O spalla Harry Lookofsky, violinista clássico apaixonado por jazz, revelado nas Orquestras da NBC e de Saint Loius, recebeu a incumbência de selecionar os melhores nomes em matéria de violino, viola, cello e contrabaixo nas fileiras da Sinfônica de New York. Ao invés de uma grande seção de sopros, Manning optou pela solução minimalista de usar apenas dois flugelhorns (Marvin Stamm & Alan Rubin) e três flautas (George Marge, Romeo Penque & Phil Bodner - estes dois últimos, ilustres participantes das célebres sessões de Miles Davis & Gil Evans), volta e meia somadas às sensuais vozes de Maria Helena Toledo, Barbara Massey (da dupla soul Barbara & Ernie), Linda November, Marilyn Jackson e Stella Stevens. Ouvidas basicamente em discretos mas charmosíssimos “wordless vocals” em faixas como “Windown Girl”, “Helicopter 274” e “Sofisticada”, que tocaram muito nas rádios especializadas em “easy listening” e “adult contemporary”. Toots Thielemans, ao ouvir a valsa-jazz “Sofisticada”, ficou tão apaixonado que telefonou imediatamente para Bonfá, propondo trocá-la por “Bluesette”, sua obra-prima. “Sofisticada” foi logo incorporada por Bonfá a seu repertório de shows, inclusive voltando a grava-la nos discos “Bonfá/Burrows/Brasil” (feito na Austrália em 78 para a Cherry Pie) e “The Bonfá Magic” (Milestone), que tive a honra de produzir em 91. Única faixa não inédita, “For a Distant Love” nasceu como tema principal da trilha composta em Paris por Luiz para o filme francês “Pour un Amour Lontain”, dirigido por Edmond Séchan em 67, com arranjos de Vladimir Cosma. Mais tarde, a música recebeu letra de Yana Purim em 84, dando nome ao segundo disco da cantora, do qual Bonfá participou tocando violão Ovation. Outra melodia de extrema beleza, “Man Alone” ganhou letra de Stanley Jay Gelber (recomendado por Claus Ogerman) para inclusão no disco “Someday – The Ballad Album”, de Ithamara Koorax. De seus companheiros em “The New Face”, Bonfá manteve amizade apenas com Ron Carter (convocando o baixista para o segundo disco na RCA, “Sanctuary”, seguido de uma turnê pelo Haiti em 71, e depois em 95 para o premiado “Ithamara Koorax Sings the Luiz Bonfá Songbook”) e Gene Bertoncini (recrutado para “Sanctuary”, “Non-Stop to Brasil” em 89 e “The Bonfá Magic” em 91), além de estar em contato eventual com Nelson Angelo e Dom Um Romão. Ray Barretto, Phil Bodner, Romeo Penque e Marvin Stamm foram reconvocados para o petardo fusion “Jacarandá” (73). Depois do terceiro LP na RCA, o soberbo “Introspection” (72), relançado em 2001 na série “RCA 100 Anos de Música”, Bonfá retomou a colaboração com Deodato em “Jacarandá”, seguido pelo funkyado “Manhattan Strut” com Dom Salvador & Leon Pendarvis. Em 74, após dividir o palco com os pianistas Dave Brubeck & Ramsey Lewis num concerto em Washington, Luiz decidiu diminuir o ritmo de trabalho. Optou por passar a maior parte do tempo no Brasil, viajando aos EUA apenas uma vez por ano, para não perder o green-card. Quando eventualmente venceu a preguiça, excursionou pela Europa em 76, pela Austrália em 78, fez temporada sold-out no clube de jazz Fat Tuesday’s em 87, compôs a trilha para o filme “Prisoner of Rio” (sobre a vida de Ronald Biggs) em 89, gravou com Toots Thielemans em 92, armou inusitada parceria com o roqueiro Lord K em 93, e passou a trabalhar com Ithamara Koorax a partir do ano seguinte. Foi também sampleado pelos grupos Planet Hemp e Smoke City. Analisar detalhadamente as performances de Bonfá em “The New Face” transformaria este livreto numa novela, tal a riqueza de detalhes, a quantidade de nuances, a qualidade dos improvisos. Jamais usando palheta, Bonfá constrói solos de extrema sofisticação, aulas de lógica arquitetônica, em faixas como “Window Girl” (marcada também pelos desenhos rítmicos desconcertantes de Ron Carter) e especialmente “For a Distant Love”, num solo sob a clara inspiração de Wes Montgomery. Última faixa a ser gravada, praticamente de improviso, “Macumba” abriga outro desempenho fantástico. “A sessão tinha sido dada como encerrada quando o Bonfá me chamou para mostrar a melodia”, conta Bertoncini. “Ron Carter, que estava gravando o disco de baixo elétrico mas tinha levado o acústico para o estúdio, porque ainda tinha um show naquela noite, ficou fascinado e tirou o instrumento do estojo. Dom Um foi para a bateria, usando somente as baquetas de feltro, e felizmente o engenheiro começou a gravar! Impressionante como o Bonfá nunca utilizou gratuitamente seu virtuosismo. Ele tinha técnica de sobra para fazer solos velozes, mas preferia a expressividade do fraseado ao invés de partir para malabarismos ou perder-se em divagações”. Por essas e outras virtudes, o mundo irá eternamente reverenciar o seu talento. Arnaldo DeSouteiro
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