Raul De Souza:À Vontade Mesmo (2002) |
Raul de Souza: À Vontade Mesmo Lançado em janeiro de 1965, reeditado agora pela primeira vez, “À Vontade Mesmo” documenta a estréia-solo de Raul de Souza, o mais completo, versátil e expressivo trombonista brasileiro de todos os tempos - e também o único a alcançar fama mundial, graças a seus trabalhos com Airto, Flora Purim, Sonny Rollins, Cal Tjader e George Duke. Nascido João José Pereira de Souza, em 23 de agosto de 1934, no Rio de Janeiro, “Raulzinho” começou tocando pandeiro na Igreja Presbiteriana da qual seu pai era pastor. O primeiro trabalho profissional surgiu aos 16 anos, tocando tuba na banda da Fábrica Bangu, onde trabalhava como tecelão. “Era uma das indústrias mais importantes do Rio naquela época”, relembra. “Tocávamos nas inaugurações das lojas e também em jogos de futebol, para animar as torcidas. Experimentei flauta, trompete e sax tenor, antes de optar pelo trombone de válvula, também chamado de trombone de pistons”. Durante o serviço militar, ficou amigo do lendário batera Edison Machado quando ambos serviam na Infantaria de Guarda da Aeronáutica, chegando a Primeiro Sargento-Músico. Retomando a vida civil, passou a tomar parte em vários concursos radiofônicos, conhecendo mestres como Pixinguinha, Waldir Azevedo e Altamiro Carrilho. “Em 1955, fiz algumas gravações com A Turma da Gafieira, conjunto liderado pelo Altamiro, com participações de Edison Machado, Sivuca, Zé Bodega e Baden Powell. Depois fui para Curitiba, onde casei, tive três filhos e fiquei cinco anos, tocando na orquestra do trompetista Osval Siqueira, e na Banda da Escola de Oficiais e Guardas da Base Aérea de Bacacheri. De noite, eu saía de uniforme e tudo para tocar nos dancings. Foi lá também que conheci o Airto, que cantava boleros em boates de reputação duvidosa”, diverte-se. Diz a lenda que, em uma região pantanosa, o trombonista costumava estabelecer inusitados diálogos musicais com um búfalo, o que teria influenciado sua volumosa sonoridade. O jornalista Roberto Muggiati, testemunha ocular do fato, conta a versão correta para a esdrúxula amizade que gerou até mesmo uma música (“Water Buffalo”, incluida no disco “Colors”) em homenagem ao mamífero ruminante. “Raulzinho tocava numa boate que ficava dentro do Passeio Público de Curitiba, misto de parque e zoológico. Nos intervalos, ele caminhava para perto do tanque dos búfalos, que de tão grande parecia uma lagoa. E de fato travava longos duetos com os animais, para espanto meu, do escritor Dalto Trevisan, e até do Edson Maciel, o Maciel Maluco, grande trombonista que foi parar em Curitiba quando soube que o Raulzinho estava por lá”, relata Muggiati. “Tanto o Airto como eu fomos tentar a sorte em São Paulo, conseguindo emprego no João Sebastião Bar, reduto da bossa nova, onde conhecemos a Flora, o Cesar Mariano e o José Roberto Bertrami, futuro pianista do Azymuth. Em 1964 eu já estava de volta ao Rio, tocando com Edison Machado, Tião Neto, Hector Costita e Edson Maciel no inovador “Você Ainda Não Ouviu Nada!”, do sexteto Bossa Rio, do Sergio Mendes”, diz Raulzinho. “Foi um dos anos mais produtivos da minha vida. Excursionei pela Europa com o Sergio, na volta entrei para o conjunto Os Catedráticos, do Eumir Deodato, gravando o disco “Tremendão”, e reencontrei o Edison, que me convidou para o primeiro LP dele, “Edison Machado É Samba Novo”, outro registro genial”. Raulzinho ainda aprontou muito mais em 64. Além
dos discos de estréia do Quarteto Em Cy e do pianista Tenório
Jr. (“Embalo”), tomou parte em duas importantes sessões
para a RCA: “Trio 3D Convida” (o segundo álbum do grupo
liderado por Antonio Adolfo) e “Flora É M.P.M.”, primeiro
LP de Flora Purim. Terminou contratado para gravar seu próprio
disco como líder para a RCA, escolhendo o Sambalanço Trio
(Cesar Camargo Mariano ao piano, Humberto Clayber no contrabaixo &
Airto Moreira na bateria) como companheiros na empreitada. “Eles
já tocavam juntos em São Paulo desde 1962, tinham gravado
três LPs, estavam super-entrosados. Então, não tinha
como dar errado”. Ouve-se a voz do próprio líder anunciando a faixa-título, um samba-jazz pauleira com ótimos solos de Raul, Mariano e Clayber, e uma intervenção simplesmente fenomenal de Airto, revezando vassourinhas e baquetas num improviso demolidor. Anos mais tarde, Raul regravaria a música, com o título em inglês de “At Will”, e a presença de Airto na percussão, no disco “Sweet Lucy” em 1977. Uma introdução romântica disfarça outro petardo, “Olhou Prá Mim”, tema de Eduardo Lincoln Sabóia & Silvio Rodrigues Silva – mais conhecidos como Ed Lincoln & Sylvio Cesar – que passou a ser visto com outros olhos depois de gravado por João Donato no antológico “Muito À Vontade” em 1963. Mariano brilha com impecável solo dentro de um arranjo cheio de mudanças de andamento, incluindo curto trecho em jongo durante a “tag”. Piano grandiloquente, baixo com arco e baquetas de feltro nos pratos compõem a atmosfera lírica na abertura de “Pureza”, parceria de Mariano & Clayber. Mas a temperatura volta a subir na inflamada abordagem de “Estamos Aí”, o standard de Durval Inácio Ferreira & Moyses David “Mauricio” Einhorn, então recém-popularizado por Leny Andrade. Endiabrados, Raulzinho e seus comparsas seguem a mil por hora em outro clássico da bossa, “Você e Eu”, de Carlos Lyra, novamente com o trombonista dando um show de fraseado. Airto, indomável no decorrer de todo o álbum, ainda incorpora congas – reforçando a pulsação afro-cubana dos arranjos - em duas faixas: “Jordu”, obra-prima de um dos grandes pianistas da era do bebop, Irving Sidney “Duke” Jordan, sucesso do Clifford Brown-Max Roach Quintet em 1954; e “Fly Me To The Moon”, o tema de Bart Howard que Tony Bennett até hoje canta como ninguém, e ao qual Raulzinho fornece surpreendente tratamento. Em matéria de releitura, trata-se indiscutivelmente do ponto alto do álbum. Não poderiam faltar duas músicas de Antonio Carlos Jobim, às quais Raul confere personalíssimas interpretações, ambas incluindo uma celesta (inventada por Auguste Mustel em 1886) usada por Mariano para “colorir” as faixas: “Inútil Paisagem”, outra aula de dinâmica, fluência e articulação, e “Samba do Avião”, em andamento lento e interpretação reflexiva. Raulzinho volta ao “disco de cabeceira” de quase todos os músicos da época, o “Muito À Vontade”, de Donato, para reinventar a faixa-título. E, fechando com chave de ouro, transforma “Primavera” em suntuosa balada jazzística, extirpando todo o sentimentalismo barato e toda a melosidade que costumam infectar a bela melodia de Carlos Lyra, com Airto impecável nas vassourinhas. Após o lançamento de “À Vontade Mesmo”, Raul viajou novamente à Europa, atuando com o baterista Kenny Clarke em clubes de jazz da noite parisiense, como o Blue Note e o Elephant Blanc. Voltando ao Brasil, empregou-se no RC7, grupo de apoio de Roberto Carlos, antes de ingressar no Impacto 8. “Me sentia desapontado com o cenário musical brasileiro daquela época, então me mandei para o México em 1969”, desabafa. Estava morando em Acapulco quando, em agosto de 1973, recebeu um telefonema dos velhos amigos Airto & Flora. No auge da popularidade, eles o chamavam para ir trabalhar nos Estados Unidos. “Três dias depois eu já estava em Los Angeles, começando uma turnê em que abríamos os shows do grupo Crusaders. Quando a excursão terminou, decidi dar um tempo em Boston, para estudar no Berklee College of Music”, conta Raul. Regressando a L.A. no ano seguinte, fascinou os críticos com solos excepcionais em várias faixas do álbum “Stories To Tell, de Flora, impressionando o produtor Orrin Keepnews, então diretor artístico da Milestone. Como consequência imediata, Orrin autorizou Airto a produzir um disco de Raul como líder, o soberbo “Colors”, gravado em outubro de 74 com arranjos de um de seus maiores ídolos, J.J. Johnson, e participações de Cannonball Adderley, Richard Davis e Jack DeJohnette. “Quase caí prá trás quando vi esta turma da pesada no estúdio, tocando no meu disco... parecia um sonho!”, comenta. Apesar do fracasso comercial (“foi pessimamente divulgado”), aumentou seu prestígio perante a comunidade jazzística, levando-o a atuar em sessões de Cal Tjader (“Amazonas”), Azar Lawrence (“Summer Solstice”) e Sonny Rollins (“Nucleus”). “Rollins me chamou para fazer a turnê de divulgação do disco, mas fui atropelado, quebrei as duas pernas, passei por várias operações e fiquei três meses no hospital”, lamenta. Entretanto, outro sonho se materializou quando Airto & Flora organizaram um concerto visando arrecadacar fundos para o seu tratamento: Frank Rosolino, um de seus trombonistas favoritos, apareceu, identificou-se como fã e tocou em duo com Raulzinho, que ainda estava em cadeira de rodas. Em uma ocasião mais alegre, tocaram juntos novamente em 1978, no I Festival Internacional de Jazz de São Paulo, no Anhembi. Nesse intervalo, Raul havia assinado contrato com a Capitol,
lançando dois funkeados álbuns produzidos por George Duke
(os best-sellers “Sweet Lucy”, em 77, e “Don’t
Ask My Neighbors”, em 78, patenteando sua invenção,
o souzabone) que o levaram a ser aclamado entre os melhores trombonistas
do mundo nas votações dos leitores da revista Down Beat.
Depois, mal orientado pelo produtor Arthur Wright, embarcou na canoa furada
de “Till Tomorrow Comes” (79), uma aventura na área
da disco-music. Gravou também no LP de estréia do grupo
fusion Caldera, e em dois álbuns de George Duke: “Reach For
It” e “Brazilian Love Affair”. Ignorado na “Encicloédia
da Música Brasileira” (Itaú Cultural), virou verbete
na “Encyclopedia of Jazz in The Seventies”, de Leonard Feather
& Ira Gitler. Durante os anos 80 e 90, viveu entre Rio e São
Paulo, fazendo shows esporádicos, gravando discos (“A Arte
do Espetáculo”, “The Other Side of The Moon”)
muito aquém de seu talento, e participando de sessões com
Gilberto Gil, Toninho Horta, Maria Bethânia, Lisa Ono, Salena Jones,
Nelson Angelo, Taiguara, João Donato, Eloir de Moraes, e no último
disco de Jobim, o Grammyado “Antonio Brasileiro”. Por sorte,
antigas gravações até então inéditas
com Airto & Flora (“Colours of Life”, “Aqui Se Puede”,
“Samba de Flora”) e Georgie Fame (“The Arnaldo DeSouteiro |