Carlos Lyra: Saravá (2001)

Carlos Lyra: Saravá

Reedição produzida por Arnaldo DeSouteiro (Jazz Station Productions)

Texto para o fundo de estojo:

Gravado no México em 1970, lançado agora pela primeira vez no Brasil, “Saravá” inclui algumas das mais belas canções de Carlos Lyra, como “Também Quem Mandou”, “Feio Não É Bonito” e “O Bem do Amor”, somadas a temas de maior swing como “Até Parece” e “Sambalanço”. Além de inspiradas recriações de “Tristeza”, clássico de Haroldo Lobo & Niltinho, e do “Samba da Benção”, de Baden Powell & Vinicius de Moraes, em uma versão em castelhano preparada pelo próprio Lyra.
Arnaldo DeSouteiro


Texto adicional para o livreto:

Qualquer estrangeiro desavisado que passasse pela Cidade do México, entre 1968 e 1971, poderia achar que era ali, e não Buenos Aires, a verdadeira capital do Brasil. Pelo menos em termos de música, tal a quantidade de artistas brasileiros de passagem ou até mesmo residindo temporariamente na acolhedora cidade. Entre muitos outros, nomes como Luiz Eça (liderando seu conjunto A Sagrada Família, que incluía Joyce, Nelson Angelo, Novelli, Vitor Manga, Rose etc), o Tamba 4 (Laércio de Freitas, Bebeto, Ohana e Dorio Ferreira, volta e meia transformado em sexteto acrescido por Flora Purim & Lennie Dale), Luiz Carlos Vinhas & Bossa 3 (com Octavio Bailly e Ronnie Mequita), Leny Andrade, Pery Ribeiro, Osmar Milito, Breno Sauer, Ely Arcoverde e os grupos “Alegria Alegria” de J.T. Meirelles, e “Brasilia 71” de Papudinho com a cantora Zezinha Duboc.

Existiam ainda os conjuntos Vox Populi (Helvius Vilella, Normando Santos, Fernando Leporace, Guto Graça Mello) e Anjos do Inferno (com Leo Villar, Nanai, Roberto Paciencia etc). Sem falar de João Gilberto, que viajou em 69 com Miucha e Chico Batera para passar dez dias, mas ficou dois anos, chegando a gravar um antológico disco para o selo Orfeon, “Farolito - João Gilberto En México” (produzido por Mariano Rivera Conde), recentemente relançado como “Ela É Carioca”. Brasileiros residentes nos Estados Unidos, como Sergio Mendes (no comando do Brasil 66) e Walter Wanderley (liderando um trio com José Marino & João Palma), então no auge do sucesso, volta e meia davam uma esticada até o México para faturar uma grana extra. Até mesmo Milton Nascimento esteve por lá, participando do I Festival de Música Brasileira e Americana, em 1969, juntamente com Eumir Deodato, Airto Moreira e Bola Sete.

O motivo para tão fantástica acolhida? “No México, o povo adorava bossa nova, que já tinha saído de moda no Brasil”, resume o lendário baixista Manuel Gusmão, dos discos de estréia de Jorge Ben, Flora Purim e Dom Um Romão. “O mercado de trabalho estava péssimo, no Rio e em São Paulo, tanto em termos de gravações de discos como de shows. Para piorar, os festivais entraram em decadência, com a bossa substituída pela Jovem Guarda e pelo Tropicalismo nos programas de TV. Havia o terror do AI-5, muita gente queria fugir do Brasil por variados motivos. Então, quando descobrimos o interesse dos empresários e do público mexicano pelo nosso som, houve uma revoada de artistas”, explica Gusmão, que viveu durante quatro anos no México, tocando com músicos locais e liderando seu próprio trio com Edison Machado na bateria e Moacir Peixoto ao piano. “Fiquei muito amigo do principal empresário mexicano, Rogelio Villa Real, sócio da cadeia de hotéis Camiño Real e de um local maravilhoso chamado El Señorial, que abrigava nada menos que cinco salas de shows. Depois da Copa de 70, aí a coisa explodiu de vez, só dava Brasil”.

Quase todos os hotéis apresentavam grupos brasileiros em suas boates, mas o campo de trabalho estendia-se a outras frentes. Grupos teatrais como o Teatro de Arena montaram peças como Arena Canta Zumbi (de Augusto Boal & Gianfrancesco Guarnieri, com trilha de Edu Lobo), exibida no Teatro Municipal da Cidade do México. O bailarino Lennie Dale preparou um grande espetáculo de dança & música no Fiesta Palace. Carlos Eduardo Lyra Barbosa (carioca de 11 de maio de 1935) beneficiou-se da boa acolhida de múltiplas maneiras: compondo jingles para comerciais de TV, trabalhando como locutor e tradutor durante as Olimpiadas de 1968 (quando foi inaugurado o Canal 8, o primeiro a realizar transmissões a cores no México), escrevendo trilhas para cerca de dez filmes curta-metragem, e montando várias peças teatrais. Entre elas, “Ouviu Falar Em Dragão”, em 1970, que lhe deu os prêmios de melhor autor e diretor do ano. Fez tanto sucesso a ponto do título passar a dar nome a uma companhia teatral, que se tornaria uma das mais famosas no país.

Durante os preparativos para a montagem de outra peça, a famosa “Pobre Menina Rica” (texto e letras de Vinícius de Moraes, estreada no Rio em 63), Carlos Lyra conheceu sua futura esposa, a atriz, modelo e cantora norte-americana Katherine “Kate” Lyra. “Foi paixão à primeira vista, fulminante desde que a vi chegando para participar dos testes para o elenco”, conta Carlinhos. “A peça nem chegou a entrar em cartaz, mas isso não fez a menor diferença”, brinca. “Nos casamos em 69, no México, e ficamos por lá até 71, quando achei que era hora de voltar ao Brasil, que a Kate ainda não conhecia”. Na verdade, antes de fixar residência no México, o compositor já havia se encantado pelo país ao realizar uma turnê como violonista no grupo de Stan Getz. “Foi algo fundamental para despertar no Carlinhos a sua latinidad”, comenta Kate.

Em fins de 1969, muito em função do êxito do LP gravado um ano antes para o selo Capitol, Carlos Lyra atendeu a um convite da RCA local para registrar um segundo disco em território mexicano, “Saravá”, concluido em 1970 e agora finalmente lançado – pela primeira vez – no mercado brasileiro. (Na foto da capa, Kate Lyra aparece em segundo plano). Produzido por Rubén Fuentes, inclui onze faixas, nove delas compostas por Carlos. Ao violão, em contraponto com o cravo de Mario Patrón – desdobrando-se num baloiçante órgão ao estilo de Walter Wanderley - impulsiona “Vacilada”, conhecida no Brasil como “Até Parece” (com o sub-título “Um Abraço no João”). Cravo e flauta (de Rodolfo Sanchez) fornecem sutis comentarios a “Quien te Manda / Também Quem Mandou”, parceria com Vinicius de Moraes em 63, rivalizando com a linda gravação no álbum “The Sound of Ipanema” em dupla com Paul Winter.

Discreta seção de cordas envolve a marcha-rancho “Para Não Dizer Adeus” (letra de Walmir Ayala) e o samba-canção “Só Você Não Vem” (com Carlos Fernando Fortes Fortes), ambas destacando Julio Vera no bongô. Na sequência, o baixista Mario Ballina e o batera Salvador Agueiros fazem o possível para garantir a malemolência de “Balanceo”, ou seja, “Sambalanço”. Na introdução de “El Jacal” (leia-se “Feio Não É Bonito”, do primeiro LP de Nara Leão em 63), Lyra imita tamborins ao violão, antes de render-se ao romantismo valseado de “Paz Sin Amor / O Bem do Amor” (59) e disfarçado na marchinha “Vem do Amor” (61), duas parcerias com Nelson Lins e Barros. Outro colaborador frequente, Chico de Assis, da célebre “Canção do subdesenvolvido” da censurada peça “Um Americano em Brasília”, aparece como letrista em “Lugar Bonito”, gravada nos EUA por Astrud Gilberto no álbum “Look To The Rainbow”, com arranjo de Al Cohn e letra de Norman Gimbel.

Por fim, duas inspiradas recriações. “Tristeza”, o último sucesso carnavalesco de Haroldo Lobo (1910-1965, autor de “Alá-Lá-Ô” e “Índio Quer Apito”) em parceria com Niltinho, foi escolhida por dois motivos: sua tremenda popularidade perante o público mexicano e a vontade de Carlos em dar-lhe um tratamento introspectivo, em sintonia com a letra da canção. “Sempre achei esquisito esta música, lançada em 65, ser cantada de uma forma eufórica, e aproveitei para dar-lhe o tratamento que considerava ideal”, comenta, assumindo também o orgulho por ter feito a versão em castelhano da faixa de encerramento, “Samba da Benção”, composta por Baden & Vinicius em 62. Maiores detalhes são fornecidos pelo próprio Lyra, no ótimo texto original aqui anexado. Assim, aos poucos, o Brasil vai conhecendo o Brasil. Nem que seja via México.

Arnaldo DeSouteiro
Rio, 19 de setembro de 2001
jsr@email.iis.com.br
(Produtor musical, historiador de jazz e MPB, jornalista e educador – membro da IAJE, International Association of Jazz Educators)