Sergio Mendes and Brasil '77: Homecooking (2002) |
Sergio Mendes & Brazil 77: Home Cooking (RCA 204.1001) Gravado em outubro e novembro de 1975 no badalado estúdio californiano Kendun Recorders, lançado em maio de 1976 nos EUA pela Elektra, e no mês seguinte no Brasil, pela RCA, “Home Cooking” é um disco atípico na carreira de Sergio Mendes. Nada tão radical quanto o antológico “Primal Roots” (A&M), de 1972, lançado no Brasil sob o título de “Raízes”, no qual as fórmulas de sucesso de Mr. Mendes cederam lugar a um audaz mergulho nos ritmos afro-brasileiros, fornecidos pela usina rítmica formada por Claudio Slon, Rubens Bassini, Laudir de Oliveira e o convidado especial Airto Moreira. Uma ousadia infelizmente jamais repetida, em função de ter sido o seu disco de menor vendagem, embora o mais apreciado pelos músicos e pela crítica. Para compreender “Home Cooking”, convém esmiuçar os fatores que levaram Sergio a realizar um trabalho não tão arrojado quanto “Primal Roots”, mas bem menos previsível e muito mais interessante do que o seu álbum de estréia na Elektra em janeiro de 1975, batizado apenas “Sergio Mendes”, co-produzido pelo maestro Dave Grusin (orquestrador da maioria de seus discos desde “Look Around” em 1967) e contando com as vocalistas Bonnie Bowden & Sandra Catton. Já em “Home Cooking”, Sergio tratou de produzir o disco sozinho (auxiliado pelo fiel escudeiro Oscar Castro Neves), assinou todos os arranjos, pilotou um arsenal de teclados “vintage” e ainda manteve os laços de “business” com Grusin, diplomaticamente convidando-o a participar, como pianista, da faixa “Shakara”. Torna-se relevante lembrar também que, em 1975, Airto, Flora Purim e Eumir Deodato estavam na crista da onda nos EUA, com uma explosiva mistura de jazz, rock & funk chamada “fusion”. Sergio nunca aderiu plenamente, mas não resistiu a flertar com aquela tentadora estética em “Home Cooking”. Tanto que convidou nomes como Hermeto Pascoal e Raul de Souza, então excursionando com Airto. Além disso, recrutou dois baixistas especializados nos derivados do rhythm & blues, ambos apadrinhados por Quincy Jones: Chuck Rainey (solicitado por Roberta Franklin, Aretha Franklin, Ray Charles, Steely Dan) e Louis Johnson (líder do grupo Brothers Johnson, e futuro colaborador de Paul McCartney, Michael Jackson e Donna Summer). Nem precisava dizer que os grooves ficaram bem mais fortes e funkyados, algo que seria impossível com o baixista anterior, o bossanovista Tião Neto, amigo niteroiense de Sergio desde o tempo do Bossa Rio. Mais um detalhe revelador: a escolha do engenheiro de som Phil Schier, que havia acabado de gravar o LP “Identity”, de Airto, do qual Louis Johnson e Raul de Souza também participaram. Nos vocais, ao invés de uma dupla, um trio formado pelas beldades Bonnie Bowden Amaro (no grupo desde o disco “Love Music”, de 73, quando substituiu Geri Stevens), Lise Miller e Marietta Araiza. Curiosamente, Gracinha Leporace, presença frequente nos discos do marido desde a gravação de “Lapinha” no LP “Fool on the Hill”, em 68, ficou de fora. Na “cozinha”, marcaram presença o excelente baterista Claudio Slon (argentino criado em São Paulo, falecido em abril de 2002, em Denver, aos 58 anos) e o não menos notável percussionista Paulinho da Costa (carioca, futuro “superstar” de estúdio, tendo gravado até com Michael Jackson e Madonna), importado para os EUA por Sergio Mendes, nato caçador de talentos. Ora acoplando congas, guiro e timbales (“Sunny Day”), ora concentrando-se nos bongôs e pandeirola (“Hey People, Hey”), Paulinho dá um show de bola. Convidado especial, Gilberto Gil toca violão em três composições suas, todas apimentadas por “levadas” contagiantes: “Hey People, Hey” (versão para “Ê, Povo, Ê”, gravada naquele mesmo ano para o LP “Refazenda”), “Cut That Out” e “Emoriô”, esta última em parceria com João Donato, uma das maiores influências de Sergio em seu início de carreira. Na verdade, Gil fora chamado às pressas por Donato, durante as gravações do álbum “Lugar Comum”, alguns meses antes, para adicionar letras a varios temas até então instrumentais. Entre eles, “Emoriô”, também gravada por Fafá de Belém em seu compacto de estréia. Logo depois, a história se repetiu quando Sergio pediu a Gil para preparar uma letra em inglês para “Emoriô”, concluída no estúdio, durante as gravações de “Home Cooking”. Embora o álbum não tenha emplacado hit algum na parada pop da Billboard, “Emoriô” foi bastante executada nas rádios americanas, recebendo mais atenção do que todas as outras músicas de Donato gravadas anteriormente por Sergio: “Aquarius”, “Muito À Vontade”, “The Frog” e “The Crab”. Hermeto Pascoal, desdobrando-se no órgão Hammond (mixado baixinho, baixinho...) e na flauta – “humming” a la Jeremy Steig - acrescenta um molho extra à performance, que ainda tem o próprio Gil num discreto fraseado vocal espremido entre solos de Hermeto e de Sergio. Quatro anos depois, o baiano viria a fazer a primeira de três tentativas frustradas de penetrar no mercado americano, deixando-se produzir por Mendes no álbum “Nightingale”, até hoje inédito no Brasil. (As outras duas tentativas ocorreram em 1982, através de um disco produzido por Ralph MacDonald, misteriosamente nunca lançado, e em 91, no deplorável encontro com Ernie Watts no CD “Afoxé”). Finalmente, Gil conseguiu o reconhecimento tardio com “Quanta Live”, vencedor do Grammy em 98 na categoria “world music” de duvidosa reputação. Michael Sembello, guitarrista e compositor de canções gravadas por Chaka Khan, Diana Ross e Stevie Wonder, escreveu duas faixas especialmente para “Home Cooking”: o saboroso tema de abertura, “Sunny Day”, em parceria com o saxofonista Hank Redd (colaborador de Buddy Miles e Stevie Wonder), e a sincopada “It’s Up To You”, com uma execução impecável de Slon. “Sunny Day”, de forte refrão e contagiante pulsação latin-funk marcada pelo piano elétrico Fender Rhodes, de Sergio, acaba sendo um dos pontos altos do disco, graças também às intervenções malemolentes dos trombonistas Raul de Souza (1934-) & Frank Rosolino (1926-1978). Aliás, foi a única vez em que discípulo e mestre gravaram juntos, apesar de terem realizado alguns shows em parceria, inclusive no I Festival de Jazz de São Paulo, em 78. Sem esquecer que Raulzinho havia formado outra infernal dupla de trombones, com Edson Maciel, no antológico LP de Sergio Mendes & Bossa Rio, “Você Ainda Não Ouviu Nada!”, em 64. O naipe de sopros - completado pelos trompetistas Oscar Brashear (veterano das bandas de Count Basie e Woody Herman) e Ray Maldonado (diplomado nos grupos de Eddie Palmieri e Mongo Santamaria), e pelo tenorista Don Menza (Buddy Rich, Stan Kenton, Maynard Ferguson) - destaca-se na única faixa instrumental, “Shakara”. Tema do baixista Louis Johnson, traz o batera Harvey Mason substituindo Claudio Slon, enquanto Sergio ataca de Arp String e Fender Rhodes, deixando o piano acústico a cargo de Dave Grusin. Uma das poucas faixas sem nenhum elemento brasileiro, “Where To Now St. Peter”, desencavada do LP “Tumbleweed Connection”, lançado por Elton John em 71, fica aquém da recriação bossanovística de “Tell Me In A Whisper”, bela melodia de Edgar Winter revelada meses antes em seu álbum “Jasmine Nightdreams”. Por fim, a presença do casal Carlos & Katherine “Kate” Lyra, que acompanhou todo o processo de gestação do disco, compondo a sensual “It”s So Obvious That I Love You”, de belos caminhos harmônicos, e cujo balanço antecipava a “new-bossa” patenteada por Matt Bianco, Style Coucil & cia. na década seguinte. Depois, seria rebatizada “Cara Bonita”, quando regravada em português pelo próprio Carlos (“Herói do Medo”) e no último disco criativo de Nara Leão, “Os Meus Amigos São Um Barato”. “Estávamos morando em West Hollywood desde 73, onde o Carlos fazia terapia primal e eu trabalhava como backing vocalist do Herb Alpert”, relembra Kate. “Visitávamos frequentemente o Sergio, até que um dia, fazendo um som à beira da piscina, mostramos a música. Ele se apaixonou e pediu a letra em inglês, que saiu direto, porque eu sou ótima para trabalhar sob pressão”. Valorizando ainda mais o tema, o guitarrista Dennis Budimir, subestimado “músico de estúdio” que tocou com meio-mundo (de Julie Andrews a Ringo Starr, de Peggy Lee a Frank Zappa), apronta um solo elegantíssimo. Sergio gostou tanto do resultado que demandou outra tarefa a Kate: fazer a letra para a faixa-título, “Home Cooking”, a mais longa e “loose” do álbum, parceria do líder com o baixista Chuck Rainey, construida basicamente a partir de riffs de guitarra. Sergio passeia suavemente com seu Rhodes sobre o groove funk-rock pesadão, gerando instigante contraste. Os trombonistas usam surdina “plunger” e Don Menza geme no tenor, enquanto os dois guitarristas aplicam pedais de distorção. “Fiz a letra pensando no efeito sonoro das palavras, buscando terminações de efeito rascante, tendo em mente os timbres das três cantoras”, explica Kate Lyra. Nada de grande profundidade intelectual, mas sim algo leve e divertido, tipo “anywhere/anywhere we go/take it slow/we can make it grow”. Afinal, como diz o refrão repetido infinatamente, “home cooking is so good/home cooking’s so good/home cooking’s so good...” Arnaldo DeSouteiro |