Tamba Trio: Tamba 74 (2001)

TAMBA TRIO (Liner Notes and Reissue Produced by Arnaldo DeSouteiro)

Relançado agora em CD, pela primeira vez desde a sua edição original em 1974, este fantástico álbum do Tamba Trio capta o grupo inteiramente revigorado, na sua fase de maior inventividade. Em plena ebulição criativa, respirando e transpirando modernidade, no sentido mais amplo e literal da palavra. É um Tamba anos-luz distante do grupo apenas acústico e bossanovista, ampliando seus horizontes em todos os sentidos. Revelando uma estética renovada, incorporando instrumentos eletrônicos, e trazendo um repertório ecelético mas homogeneizado pelos fenomenais arranjos de Luiz Mainzl da Cunha de Eça (1936-1992), apimentados por instigantes performances de Adalberto José de Castilho e Souza (1939-) e Helcio Paschoal Milito (1931-).

Ao contrario do também fenomenal Zimbo Trio, que nasceu e até hoje continua sendo um grupo bem comportado – inclusive com os mesmos componentes há mais de 36 anos! -, o Tamba Trio já começou conturbado. No melhor dos sentidos! Um coquetel explosivo de talento e turbulência. Tanto que, ao fazer seu primeiro show oficial (em 19 de março de 1962, no Bottle’s Bar) e ao gravar logo em seguida seu LP de estréia para a Philips, o contrabaixista original, o craque Octavio Bailly Jr. (futuro membro do Bossa 3 e do Bossa Rio), já havia deixado o conjunto, sendo substituido por Bebeto.

Melhor assim. Alem de ótimo baixista, Bebeto dominava varios tipos de flautas, sax tenor e ainda cantava muitíssimo bem, apesar da pouca extensão vocal. Se Helcio havia dado o nome (de origem indígena) ao grupo por conta do instrumento que inventou, e se Luiz Eça era a alma harmônica (apesar de acusado de provocar tanta desarmonia extra-musical) do trio, Bebeto – desdobrando-se nos sopros, vocais e no baixo - representava o elemento diferencial que viria a colocar o Tamba em uma posição artística incomparável na história da MPB.

Ao contrário do que se pensa, Helcio não usou a tamba em nenhum dos LPs gravados nos anos 60, lançando mão do efeito sonoro-visual do instrumento apenas em shows em locais maiores – porque, nos exíguos palcos dos clubes do Beco das Garrafas, não havia espaço para aquele enorme kit de percussão. Em estúdio, somente passou a empregar a tamba a partir deste disco de 74. Era também o único trio que, nas gravações (mais especificamente nos três primeiros LPs), contava com a participação de um quarto músico, Durval Ferreira, no violão. Pioneiros por vocação, excursionaram pelos EUA (shows no Village Vanguard, meca do jazz em NY) antes do célebre concerto de bossa nova no Carnegie Hall. Foram o primeiro grupo a dividir um show com um humorista, Chico Anysio, na boite carioca “Au Bom Gourmet”.

Alguns engraçadinhos diziam que o quarteto Os Cariocas deveria se limitar a cantar, assim como o Tamba deveria apenas tocar. Pura maldade. Pelo menos no caso do Tamba... Principalmente porque, descontados os desastrados solos vocais cometidas por Eça e Milito no disco de estréia batizado apenas “Tamba Trio”, as engenhosas vocalizações coletivas eram perfeitas, verdadeiras aulas de harmonia ministradas por quem, já em meados dos anos 50, arriscava vocais (ao lado do guitarrista Paulo Ney e do então baixista Ed Lincoln) no antológico LP de 10 polegadas “Uma Noite No Plaza”, antes de barbarizar num sexteto vocal que incluia as irmãs Flora & Yana Purim. “No Tamba, Luiz fazia os arranjos vocais, nós três armávamos a parte instrumental”, desvenda Bebeto.

No palco, Eça, Bebeto e Milito entrosavam-se às mil maravilhas. Fora dele, viviam às turras, o que provocou várias mudanças na formação do conjunto. Em 65, o batera Rubem Ohana de Miranda substituiu Milito, que se mandou para NY, onde gravou até com Wes Montgomery (“Bumpin’”) e Tony Bennett (“Songs for the Jet Set”). A partir de 67, veio a fase do Tamba Quarteto (logo rebatizado Tamba 4), com a entrada de Dorio Ferreira como baixista e violonista, deixando Bebeto nas flautas e vocais. Neste esquema, o grupo tentou carreira nos Estados Unidos, gravando três LPs para o selo CTI, do produtor Creed Taylor, então distribuido pela A&M: “We And The Sea”, “Samba Blim” (com suntuosas orquestrações de Luiz Eça para uma seção de cordas) e um álbum até hoje inédito, exceto por duas faixas (“Berimbau” e “Capoeira Soul”) lançadas em single.

Em seguida, o próprio Eça deixou o conjunto, em 1970, sendo substituido por Laércio de Freitas, que participou de longa temporada do Tamba no México (onde Luiz, acirrando a competição com os antigos colegas, também estava atuando à frente de um grupo batizado A Sagrada Família). Fase documentada no controvertido álbum “País Tropical”. Retrato de um grupo que àquela altura já tinha mandado para o espaço as canções de Jobim, Menescal e Bonfá presentes nos primeiros discos, optando por Cassiano (“Sem Você Eu Não Vivo”), Antonio Adolfo & Tiberio Gaspar (“Juliana”) e até Roberto & Erasmo (“Se Você Pensa”). Por um curto período, ainda no México, adotaram o nome de Tamba 6, incorporando Flora Purim e Lennie Dale.

De volta ao Brasil, findas todas as ego-trips (e também as bad-trips...), Eça, Bebeto & Milito reconciliaram-se. Chegaram à conclusão de que tinham sido feitos uns para os outros, juraram amor eterno, mas decidiram que, assim como num casamento retomado depois de tumultuadas escapulidas, era preciso apimentar a relação para evitar nova crise. Esqueceram de vez o repertório antigo, passaram a compor num processo de brain-storm que resultou em temas instigantes, e ampliaram ainda mais a concepção sonora. Como todos os sábios, livres de preconceitos e tocando e andando para as patrulhas ideológicas, tomaram atitudes radicais para que este disco de retorno ao mercado, e de estréia na RCA em 74, se transformasse em um novo marco. De uma nova fase.

Para ficarem longe das pressões de uma éntourage que mais atrapalhava do que ajudava, fazendo lobby para influir no repertório, espertamente foram gravar o disco no recém-reformado estúdio da RCA em São Paulo, em 16 canais. Uma maravilha para quem se acostumara a fazer o diabo para gravar aqueles overdubs todos em apenas dois ou três canais na época da Philips. No cardápio, para desespero dos puristas, misturaram Ivan Lins com Antonio Carlos & Jocafi, Ary Barroso com Tom & Dito, dupla acusada de porta-voz da ditadura militar. A futurista ilustração da capa impactante, assinada por Ney Távora, reflete fielmente a sonoridade desafiadora do conteúdo.

Luiz Eça, sem dispensar o piano acústico de técnica clássica lapidada em Viena com Hans Graff e Friedrich Gulda, adicionou dois tipos de piano elétrico (o Fender Rhodes muito em voga e o Yamaha CP-70 ainda não popularizado) e vários modelos de sintetizadores das pioneiras marcas Arp e Moog. Helcio Milito, além da bateria e da tamba finalmente utilizada em gravação, não se furtou a usar cuíca, tamborim, pandeiro e agogô em algumas faixas (“Não Tem Perdão”, “Mestre Bimba”) para criar efeito de uma bateria de escola de samba em miniatura. Bebeto, formando fascinantes naipes de flautas (“Reflexos”, “Quadros”) graças ao recurso de overdubing, também encaixou sax, trocou o baixo acústico pelo elétrico, e ainda arriscou-se a uma guitarra de pegada roqueira na faixa de abertura (“Se É Questão de Adeus Até Logo”), dando novo sabor ao hit de Tom & Dito, com incríveis alternâcias de groove e andamento.

As ousadas harmonizações prosseguem por “Não Tem Perdão”, de Ivan Lins & Ronaldo Monteiro de Souza, com o refinamento instrumental chegando logo ao auge na lisérgica “Reflexos”, de Eça. As aulas práticas de dinâmica não se processam apenas nos arranjos, como também no escalonamento das faixas, obecendo a infalível tática de tension and relax. Haja visto o romantismo desconcertante de “Gazela”, tema de Bebeto (usando sua voz de eterno adolescente desprotegido) letrado por Arlette Neves (esposa de Milito), ensanduichado entre “Reflexos” e a obra-prima “Mestre Bimba” (criação coletiva do Tamba), carro-chefe do disco nas rádios, campeã de execução na JB-AM no segundo semestre de 74! Prova trágica e incontestável da decadência de qualidade da música brasileira.

Junto com “Mas Que Nada” (do LP “Avanço” de 63) e “Sanguessuga” (do segundo LP para a RCA, em 75), a vanguardista “Mestre Bimba” viria a tornar-se a faixa do Tamba de maior sucesso no cenário do acid-jazz. A ponto de ser incluida, ao lado de gravações de Herbie Hancock e George Duke, na coletânea “The Soul of Science”, produzida em 2000 pelos DJs ingleses Ian O’Brien & Kirk DeGiorgio. “Ossaim”, dos hit-makers Antonio Carlos & Jocafi, surge valorizada por uma interpretação visceral, com Helcio dando um show à parte na tamba (instrumento formado por quatro frigideiras, caixa-clara, três tambores e dois bambus). E a teatralizada performance do tema “Em Casa”, na qual ouve-se a voz de Luiz chamando Bebeto para levar na flauta a singela melodia (parceria do pianista com o ator – e flautista amador – Carlos Vereza) provoca efeito instantâneo, selando a comunicação entre executante e ouvinte, conduzido à intimidade da gravação.

Abrindo o que era o lado B do LP, outra surpresa: a união dos sambas “Prá Machucar Meu Coração”, “Rosa Maria” e “Não Tenho Lágrimas”, redimensionados em clima hiper-cool, com Eça no Fender Rhodes e Milito deslizando nas vassourinhas e nos múltiplos sinos. Passam pelos “Quadros” de tintas vanguardistas, com os sintetizadores envenenados por phasers e delays. Seduzem através do embalo afro-cubano de “Não Tem Nada Não”, parceria de João Donato & Eumir Deodato composta para o álbum “Donato/Deodato”, e à qual Marcos Valle adicionou letra para grava-la no disco “Previsão do Tempo”. Reafirmam o poder de síntese nas compactas “O Homem” (conduzida pelo sax) e “Morada”, lições para os coitados que compram a idéia (fascista) de uma divisão (ridícula) entre música vocal e instrumental. Enquanto pseudo-jazzistas dão voltas ao redor do nada em longos improvisos repletos de clichês, os rapazes do Tamba esbanjam informação musical em faixas de dois minutos em média! Invocam raízes (“Amanhangá”) sem necessitarem de discursos de retórica, e encerram a viagem com o minimalismo experimental – mas natural – do “Infinito” de números contados por Bebeto sobre um desenho rítmico de Helcio nos bambus da tamba.

Após este disco de 74, os mancebos gravaram mais dois ótimos álbuns para a RCA. Juntaram-se e separaram-se várias vezes nos anos 80. Novamente com Ohana no lugar de Milito (que acabara de lançar nos EUA seu primeiro CD-solo, “Kilombo”, pelo selo Antilles/Island), o Tamba fez sua derradeira temporada na casa noturna People, em 89. Eu e Hélcio íamos todas as noites contemplar aquela música dos deuses. Brigado com Luiz, Milito fazia questão de chegar com o show já começado, sentava-se numa mesa longe do palco, e ficava sorvendo cada partícula de som. “Que músicos, que pianista filho da mãe...”, ele dizia sempre, extasiado.

Pouco depois, quando o grupo já havia implodido definitivamente, voltou a residir na paradisíaca cidade californiana de Carmel, que teve Clint Eastwood como prefeito. Lá ficou sabendo da morte de Luiz Eça em 92. Procurou reativar o conjunto, tentado por propostas de empresários entusiasmados com o sucesso da gravação de “Mas Que Nada”, ressucitada graças ao uso no comercial da Nike estrelado por Ronaldinho na Copa de 98. Com Bebeto no baixo e o pianista Weber Drummond tentando substituir o insubstituível Eça, chegaram a tocar no Japão. Mas a tão anunciada turnê européia acabou abortada. Milito continua ativo em Carmel, Bebeto segue fazendo shows e gravações com Pingarilho, Ithamara Koorax e Durval Ferreira. Ohana faleceu em 99.

Popular sem ser populista, complexo sem soar hermético, o disco “Tamba” encanta, ainda, pela dimensão orquestral obtida pelo conjunto de forma tão natural. Não por acaso, a palavra Trio não constou da capa nem do rótulo do LP, porque teria uma função reducionista para um conjunto de tamanha amplitude sonora. Por tudo isso, e muito mais, trata-se de um álbum indispensável, que apontava um caminho evolutivo que a MPB bem poderia ter seguido. Mas que, lamentavelmente, seus latifundiários preferiram renegar, buscando agradar os tradicionalistas, eternos chatos de plantão, sempre prontos a ceifar qualquer tentativa de transgressão a rótulos e padrões pré-estabelecidos. Do Tamba, restam discos maravilhosos. Como este, agora merecidamente redescoberto.

Arnaldo DeSouteiro
Londres, 14 de julho de 2001
(Produtor musical, historiador de jazz e música brasileira, jornalista e educador, membro da IAJE - International Association of Jazz Educators).